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Contrastes
Publicado em: 04 de setembro de 2006, 19:18:36  -  Lido 5929 vez(es)



"Eu ando pelo mundo prestanto atenção em cores que eu não sei o nome
Chorando ao telefone e vendo doer a fome dos meninos que tem fome"
(Adriana Calcanhoto, Esquadros)

Onde é que fomos encarnar?
Oh, incansável mente que - no silêncio e solidão - não para de pensar.

Quinta feira, 19:00hs
Rodízio (?) de veículos paulistano.

Origem:
Avenida Paulista
Sede Financeira e Tecnológica do País

Destino:
Espaço Holístico Harmonia
Ensaio da banda NaviTerra de world music mediunica

Minha função na origem:

Prover suporte de internet, redes e
informática para advogados e cobradores pressionarem mais "adequada" e - irônico eufemismo - "amigavelmente" aqueles que fraquejaram no sustentáculo de Maya e tentam sobreviver com seus negócios. Gastar a maior parte do tempo que me falta arrumando recursos para pagar o aluguel da casa e a vaga na garagem da Paulista, indispensável para que eu possa ficar em São Paulo e trabalhar, o que é indispensável para que eu possa pagar o aluguel e a vaga na Paulista, o que é indispensável para que eu possa trabalhar.

Esquecer dos detalhes, da minha vida, do meu espírito, dos dramas silenciosos dos devedores, das justiças injustas do judiciário, condensar, enquadrar.

Não deixar que cuidados e purismos comprometam o objetivo real da empresa.

Simplificar e massificar a tecnologia. Padronizar. Reduzir o individual.

Aprender a perder os detalhes, centrar foco no objetivo. Área de atuação: financeira.
E tudo isso para movimentar uma inconsciência maior chamada empresa, que por sua vez movimenta uma outra chamada economia, que por sua vez movimenta outra chamada sociedade. Para nos tornarmos...
Células... da inconsciência.

Minha função no destino:
Captar por sintonia as energias do local, das práticas tântricas, da assistência espiritual, e tentar traduzí-las em sintetizadores, teclados e cordas, mantendo a harmonia e sintonia com os sons que os demais voadores e harmônicos da banda obtêm.

Gerar idéias para a perefeição irritante e divina com a qual os harmônicos cuidam de cada detalhe de sincronicidade de vozes, de cada batida ou pausa infinitesimal de uma batida flamenca ou tântrica no violão folk de modo a criar no inconsciente a idéia de movimento, fazer base anônima e exaustiva para que as vozes treinem repetitivamente a intensidade com que se canta cada sílaba e paredes sonoras.

Observar, com intuição e ouvido, a clareza do som dos instrumentos, batimento de frequências, decidir em que oitava tocar o quê para não haver mistura indevida, de modo a que egos sonoros não corrompam a mensagem.

Atentar para a afinação, quem faz o quê e quando, efeitos, mesa, ordem de entrada de instrumentos, tipo de pitch, oscilador e envelope inifitesimal usado para compor cada sub-detalhe de som do sintetizador, quebras, criação de climas - aquilo que um músico mais matemático banalizaria chamando de "arranjo".

E tudo isso para ser componente menor de uma banda, que é componete de uma festa apenas com 3 músicas - uma das quais aliada a danças, aliado a outros eventos simultaneos e alternados, que roubam a cena do ego individual mas compõem o amor coletivo, estudamente preparados em cada detalhe físico, harmônico ou espiritual para INUNDAR de energias os corações a ponto de o deslumbre poder calar a mente dos visitantes de modo a que seu coração e intuição tenha chance de falar uma vez, ou pelo menos que o amor e travas possa, por ovedrose, verter para lágrimas sem que nem ao menos o público saiba qual a chapa do caminhão que o atropelou, e isto tudo só para ser componente de uma egrégora, que por sua vez leve amor universal aos presentes, que por sua vez levam cada amor colocado em cada sub-som do teclado em seus corações de modo a que sejam...
Células... da consciência.

COntrastes...
Da Paulista à Harmonia.

Escala:
Residência - outro eufemismo para um local onde chego a meia noite e saio as seis da manhã, sem notar nada, e que consome a maior parte da renda, que por sua vez foi obtida no trabalho, que por sua vez é indispensável para pagar a residência, que...

Motivo:
Pegar o carro. Colocar os instrumentos que estão comigo lá dentro. O que pode ter dentro deste maldito Korg Workstation EX para que o bendito pese tanto?

Bem, pela qualidade do som que esta maravilhosa demonstração do que de bom pode produzir a tecnologia, está perdoado. Não é nada difícil ser um Jarrier com um brinquedo destes bem pilotado. E mal precisa saber tocar. Bem, é necessário conhecer um pouco de física acústica e eletrônica, é claro.

Minha função na escala:
Conferir se tudo aquilo que acumulei e não tenho tempo de usar possui um lugar seguro, de modo a que seja só meu. Ligar o speedy que me conectaria a 256kb com a internet, se desse tempo de usar. Suprir a estante com mais livros que não lerei. Colocar mais alimentos que apodrecerão na geladeira antes que eu possa comê-los. E como passou o quinto dia útil do mês, deixar dinheiro para a empregada, indispensável para que eu possa ter belas roupas passadas, o que é indispensável para que eu trabalhe, o que é indispensável para que eu pague o aluguel do lugar que menos frequento.

Motivo do Motivo da escala:
Rodízio de veículos.
A sociedade paulistana e seu ego se veste com carros, como segunda pele, como roupas, como status, como necessidade sufocante de negar, no físico, o seu próprio fracasso enquanto consciência. É necessário trocar o carro. Temos fábricas de altíssima tecnologia para produzí-los.Importantos mais alguns, muitos, para que ultrapassemos também este limite.

O mais belo. O mais potente. A mais confortável das celas nas quais passaremos nossas horas parados no trânsito, que nos leva ao trabalho, que nos leva ao aluguel... E ironicamente, na cidade que mais os tem, na cidade que mais os produz...
Você não os pode usar.

Ah, bela metáfora, o seu símbolo de sucesso, o necessário para facilitar um relacionamento e ganhar aquela menina - na falta de valores interiores; o importante para você se sentir em sucesso ao mostrar para os amigos - de modo a não ter que mostrar a consciência vazia de conquistas eternas...

Aquilo que você precisa, o ícone do seu potencial de sucesso, de amor, de conforto...

Aquele arquétipo que ironicamente você só pode usar FORA de casa, como que mostrando que seus valores e acúmulos não servem para o interior, para onde você realmente se encontra e repousa...
Simplesmente é proibido de ser usado...

Contrastes.

Fim do dia, dizem.
Para mim, parece o começo.
Contrastes.

VOu poder estar em contato com minha consciência.

Uma loja de produtos indianos ao meu lado esquerdo, repleta de simbolismos que convidam à Meditação. Namastê.
Uma selva de veículos à minha frente, rasgando o ar com motores, buzinas e sirenes. Sinal vermelho.

Ando pela galeria a passos lentos, como o monge em Barakaya, tocando o sino de minha consciência, enquanto pessoas e carros passam em confusão.

Alguém passa com cara pesada, em salto alto, maquiagem. Ouço a conversa, carregada de termos jurídicos e mal humores. O trabalho irá com ela.

O celular toca, Cláudia Lakshmi quer apenas mandar um carinho, de graça, sem motivo, um raio de luz.
Contrastes.

Meu carro importado em casa.
Eu espero ônibus.
Contrastes.

A avenida larga, com muitas pistas.
O trânsito completamente parado.
Contrastes.

Vejo torres, antenas, prédios cheios de luzes, caros postes que iluminariam e coloririam a avenida...
Se não estivessem, pelo racionamento de energia, desligados.
Contrastes.

Painéis multi-coloridos com lâmpadas parcialmente desligadas, perdendo a resolução que tão caro custou.
Postes levantados para não serem acesos.
Antenas gigantescas em cima dos prédios, transmitindo sinais que não serão captados.
Cada vez mais pontentes do que necessário, de modo a que seu sinal não seja sobrepujado ou interferido pela antena do prédio ao lado, que é cada vez mais potente do que o necessário.

Buscamos a luz, as técnicas e tecnologias, e não cuidamos da energia interior e invisível necessária para acendê-la. O que dirá ascendê-la?
Contrastes.

O celular me traz alegria, sensação de conexão e magia - mesmo em um simples oi e beijo sonoro.
Não há motivo para a ligação - e este é o melhor motivo.
Contrastes.

Por um processo de alta tecnologia, estou conectado, fui encontrado pela Lakshimi. O nokia emite sinais em padrão TDMA, entre os MegaWatts de ondas das torres vizinhas, como barco a vela diminuto que navega no meio de mares bravios.
Entretanto, a tecnologia não permite uma conexão razoável, e as palavras da Cláudia se tornam quase incompreensíveis.
Contrastes.

Entro no ônibus.
Catraca eletrônica. Passe magnético. O cartão do passe é lido pela roleta, que automaticamente se abriria para que eu pudesse prosseguir.
Entretanto, há um trocador - ou cobrador, como preferem alguns estados. O cobrador recebe meu dinheiro, medá o troco, pega ELE o cartão eletrônico, insere na ranhura por mim. O mecanismo lê e autentica, escrevendo em um display digital que minha passagem foi autorizada.
A tecnologia não pode ser implantada pois causaria um caos em uma cidade e país onde o emprego, mesmo o desnecessário, mesmo o obsoleto, mal remunerado e pouco funcional, ainda é necessário para muitos que não teriam como sobreviver.
Sim, as roletas eletrônicas foram implantadas - mas em um páis que não podia suportar o ônus social de não haver mais empregos para os trocadores.
Contrastes.

Após greves de não trabalho para se conseguir o trabalho (contrastes), a sociedade decidiu que a função do trocador não é apenas trocar o dinheiro, mas sim ser um elo humano e social no veículo, e portanto, é necessário.

Sim, o humano é necessário.
O emprego também - afinal, ele tem que pagar o aluguel que é necessário para que possa ter pouso para que possa trabalhar para poder pagar o aluguel.
Mas o trabalho em si, não é mais.

Entretanto, a roleta automatizada está lá, e o trocador também.
Como se nos lembrasse a cada instante que buscamos mais recursos do que nos preparamos para conviver.
Como se iconizasse o líquido nobre em copo sujo.
Como um eterno alerta do que fazemos com nosso planeta e sociedade.

Às vezes, é benéfica a solidão, que nos faz observar e aprender com cada detalhe desapercebido.
Entretanto, o que se vê e conclui, muitas vezes, nos dá saudades de se estar inconsciente...
Como não compreender, então, aqueles felizes que vivem na ilusão de Matrix?
Como não amar Maya, e ao mesmo tempo não ama-la?
Contrastes.

Um banco à frente, do outro lado do corredor, duas amigas conversam sobre tecnologia. Speedy, ADSL. O micro delas é novo. Aparentemente,
um programa da empresa o financiou. Conversam, entusiasmadas, sobre o que podem fazer. Em silêncio, presto atenção.
A conversa verte para recursos bancários e financeiros, as movimentações sem precisar sair de casa, o extrato on-line, o fascínio de um mundo de tecnologia, onde você pode movimentar, movimentar, movimentar, fazer circular...

A outra amiga, que também possuia brilho nos olhos ao falar das movimentações financeiras via internet, usando termos técnicos precisos, de repente faz uma expressão mais grave um pouco, ligeiramente triste, que ninguém mais deve ter notado, e diz:
- Se bem que eu não tenho tantas movimentações assim...
(contrastes)

Olho sua roupa, sua maquiagem. È cuidadosa, mas ligeiramente decadente - como quem precisa manter um padrão e imagem que não condiz com sua realidade. Como quem traz de herança o bom gosto, mas não os recursos para materializá-lo.
Contrastes.

Sim, minha amiga anônima, você conhece e tem todas as tecnologias para não movimentar o dinheiro que você não tem.
E pode falar sobre isso enquanto caminhamos pela avenida larga - e parada.
Contendo em seu canteiro central postes altos com lâmpadas de mercúrio, potentes - e apagados.

O que estamos fazendo conosco?
Vale a pena estar acordado?

Busco a consciência e a lucidez.
E nela encontro a importância da inconsciência, ainda que temporária.
Contrastes.

Um executivo decadente fala ao celular no banco da frente.
Um garoto entra para vender chaveiros - segundo ele, única fonte de
renda para ajudar em casa.
O garoto dá dinheiro para o cobrador, que pega o ticket e insere na
catraca - eletrônica.

Pelo menos uma coisa é harmonia, e não contraste.
Eu e ele somos o mesmo.
Ele, falando com uma desenvoltura que seu nível de instrução não permitiria. Me lembro da Neuro Linguistica explicando como o ser se adapta ao meio no qual precisa sobreviver.
Como o esquimó que possui 37 classificações distintas para a neve que, para mim, é apenas neve...
Criança como eu, amadurecido a força, a fórceps.
Aquele menino simples, de cor, também precisa dominar o idioma, de forma quase artificial, polida, para sobreviver.
Educado, porém ensaiado.

Eu, navegando pelas palavras, falando de lucidez na forma escrita, divulgando o equilíbrio, enquanto trago ainda dentro de mim - como todos - tantos pontos escuros, e tantas desarmonias.
Eu, que falo do amor universal, da consciência nos ajñas e anahatas, que tenho orgulho sadio de minhas melhores atitudes em relacionamentos - mas que olho com saudável inveja para os casais simples, pobres e apagados que passeiam no Ibirapuera, dividindo um sorvete barato ou um saco de pipocas, e encontram tempo, mesmo em sua humildade, para simplesmente poderem ser felizes com o simples.
Eu, que falo do que vai em meu coração, da minha espiritualidade, não porque eu a tenha conquistado, mas porquê também é, para mim, o ar que respiro, o alento que me faz alçar vôo, a minha verdadeira sobrevivência. Aquilo que, sem ela, não faria sentido a existência.

Uma coisa, no meio deste caos urbano, é harmonia, e não contraste.
Eu e o menino somos um só.
Meu outro eu.
Eu em um terno de promoção, sendo um pouco menos do que o ícone que ostento. Abaixo do meu ícone visual.
Ele, tentado dar a aparência de melhor socialmente do aquilo que não tem como negar e que se expressa em seus olhos tristes, porem vivos.
Tentando parecer arrumado, educado, polido, usando chavões de agradecimento. Acima de seu ícone cultural.

E no meio, nos encontramos.
Eu claro, ele escuro.
Ambos pagamos a passagem para o trocador.
Ambos nos perguntamos, mesmo que inconscientemente, se é a roleta ou o trocador que se tornaram desnecessários e peso um para o outro.
Eu e ele somos vítimas e réus, cúmplices, da máquina que colocou recursos escassos numa catraca que não precisava existir.
Que fez postes para serem apagados.
Ou que prende um cobrador - na verdade uma consciência, um EU DIVINO, em uma sub-função obsoleta, apenas porque reconhecemos que ele também precisa pagar a alta conta de estar aqui.
Não quero o chaveiro com um personagem de desenho animado, moldado de forma tosca.
Gostaria que ele vendesse balas, me sentiria melhor, comprando, ajudando, mas estabelecendo algum tipo de troca, não o humilhando, nem frustrando seu trabalho.
Me sinto co-autor dos crimes e assaltos daqueles que nem chaveiros conseguiram vender.
E me lembro que eu teria ido de táxi, e gasto 20 vezes mais, e só por acaso não fui - o fim do telefonema da Lakshimi me encontrou, por acaso, de frente ao ponto, bem no momento em que passava, na Av. Paulista, um ônibus "Metrô Vila Mariana".
Há 19 reais na carteira que não haveriam. E de novo a Lakshimi, sem querer, me faz despertar a consciência para todo um universo que me passaria desapercebido.

Meus olhos se encontram com o daquele menino, e vejo Deus dentro dele, e me enxergo Deus no reflexo de minha imagem que há dentro da retina dele.
Apenas luz refletida.
Mas não é isso que somos?

Enfim, não há contraste, mas sim HARMONIA.

Decido com o coração, sem precisar pensar.
Muito antes de imaginar as palavras com as quais expresso agora o universo escondido em Maya:
Dou 1 real ao garoto, e não pego o chaveiro!

Nem tanto por caridade, em nada por ajuda, mas por algo mais belo e ao mesmo tempo mais triste - mas porque ele pagou a passagem a um trocador que opera a máquina.
E neste momento, compreendi que o garoto, assim como eu, precisa vender ao menos um chaveiro, indispensável para poder pagar a passagem que é seu custo e cruz, que é indispensável para poder vender chaveiros, que é indispensável para que pague a próxima passagem...

Não foi caridade - foi solidariedade de classe.

Lázaro Freire, Ago 2001



(Adriana Calcanhoto, diminuindo o volume, ao fundo:)


"Eu ando pelo mundo
E os automóveis correm - para quê?
As crianças correm - para onde?

Transito entre dois lados
De um lado eu gosto de opostos
Expondo meu modo, me mostro
Eu toco (canto) para quem?

Eu ando pelo mundo
E meus amigos, cadê?
Minha alegria? Meu cansaço?

Meu amor, cadê você?
Eu acordei
Não tem ninguém ao lado

--
Lázaro Freire
lazarofreire@voadores.com.br


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